Um banco de igreja, frio, de um ébano baço. Paredes escuras e castiçais altos, vitrais que brincavam com a luz no chão de pedra. Ao fundo, austero, um altar rodeado de túmulos mais antigos que a própria construção cansada. Já vira muitos pés, muitos joelhos em oratórios de veludo vermelho, roçado da devoção repentina e interesseira, algum bom partido para "caçar", um bom negócio, uma lotaria no sapatinho, a fé curriqueira de crentes dissimulados. Gostava de se arranjar, vestia sempre o sobretudo de fazenda azul, com botões revestidos de cetim e o broche da avó, aquele que diziam passar de geração em geração, o vestido de malha bourdeaux, que tricotara sem pressas, um elogio digno das suas curvas como que desenhadas por um deus perverso. Gostava daquele banco, o sétimo a contar da fila da frente da esquerda, sentava-se sempre junto à ponta, não fosse haver um acontecimento que ela menos gostasse, um casamento, um baptizado, ou mesmo, uma missa. Não era crente, não tinha deus, achava que não precisava de um, mas não deixava de gostar da sua casa, era calma, nas horas mortas, quando os outros almoçam ou pecam. Entrava no silêncio crepúscular da mórbida igreja cravada de choros ainda ouvidos, cusquices de beatas, crianças obrigadas a uma fé e, até, os pedreiros que a ergueram, bastava estar atenta, atenta ao silêncio. Os saltos cortavam o silêncio, até ao sétimo banco, pé ante pé a vaidade dos sapatos fazia-se ouvir. De uma pele de crocodilo tingida de azul com pequenas fivelas douradas, tinham um ego imenso, com razão para tal. Sabia-se, gostava de si, já tivera uma noção do mundo suficiente para isso. Viajou por terras de mandalas, de Shivas, totems, cachoeiras, malaguetas, pinguins, relógios e chocolates. Fazia-se acompanhar sempre dos seus melhores amigos, os livros. Chamavam-lhe antipática, solitária, não o era, simplesmente achava que não pertencia ali, pertencia aos altos espiritos da arte, a literatura, a pintura, as conversas tardias de cognac e charutos censuradas por senhoras ditas "de bem". Era para ali que fugia, gostava de se sentar no velho banco, tentar perceber as gravuras dos vitrais, contar castiçais, divagar com quanto ouro teria sido aquele altar feito. Sentia-se em paz ali, sossegada, fora, longe, de si. As saudades corroiam-na, as cartas deixaram de chegar e dois anos e onze meses já eram demais para apelidar de "erro dos correios". Um coração que insistia em manter-se uno, uma bola no estômago mesmo estando em jejum. "Eu volto, prometo, venho buscar-te e estaremos juntos, viveremos felizes, morreremos velhos e aconchegados do nosso amor imenso, prometo-te minha Bianca", os olhos reluziram, lágrimas e esperança, uma combinação fatal em alguns casos. As cartas enchiam o correio no princípio, depois eram doseadas, uma ou duas durante a semana "desculpa, muito trabalho, sabes como é, mas é por nós, para nós". Até ao dia do "Já estamos longe à demasiado tempo, não vou voltar, há outra pessoa na minha vida, desculpa e sê feliz", uma mão frágil que deixa o papel timbrado escorregar para um chão por baixo do banco de jardim solarengo, lágrimas de imcompreensão, corre perdida para o abrigo mais próximo, a velha igreja. Desde então passa lá todos os dias, nas horas mortas, de almoço ou pecado. Quando ouve o silêncio lembrasse do último soluço, da última lágrima, do último sorriso. O sino bate as 13 horas, por entre os feixes de luz ela consegue distinguir as pequenas particulas de pó que se passeiam pela grande abóboda. De fronte levantada deixa os cabelos cairem sobre as costas, um castanho dourado, quase louro, tira os óculos escuros que lhe escondem os olhos de azul mesclado de verde inundados da luz de uma tarde de Março. Não há mais ninguém, nem mesmo no confessionário, lembra-se de quão cómico seria se ela ali entrasse. Encontros acabados só para lá da alvorada, e não eram, só, para leituras. Os lençois com um cheiro lascivo, os cabelos revoltos e ganchos perdidos, baton esborratado em fronhas de almofada bordada, sapatos desencontrados e roupas penduradas em pontas de cama desfeitas. Um cinto que se aperta, um sorriso de um corpo iluminado que se tapa sedutor cujos raios matinais deixam entrever. O seu nome não importa, Bianca...
A missa das duas da tarde vai começar, já deu a primeira badalada de chamamento, os bancos são invadidos e as velas do altar acendem-se trémulas, ela corre e faz-se ouvir, passa a mão na bacia de água benta e benze-se, só para afastar os "demónios" da mente, amanhã terá coisas para contar da noite que virá. Os demónios virão por seu próprio pé, no último andar do velho prédio dos azulejos azuis junto à fonte das moedas dos desejos, nunca lá deixou nenhuma, nem deixará.
3 comentários:
Parabéns! Que texto!
Beijos****
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no incio parecia o saudoso Paulo Simões a falar... mas és tu minha querida, com mais um texto simplesmente lindo, no qual despertas sentimentos e memórias.
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