A hora dos fantasmasQue horas são?, perguntou Pessoa. É quase meia-noite, respondeu Álvaro de Campos, a melhor hora para te encontrar, é a hora dos fantasmas. Porque é que vieste?, perguntou Pessoa. Porque se tu vais, temos um certo número de coisas a dizer um ao outro, respondeu Álvaro de Campos, eu não te sobreviverei, partirei contigo, e antes de mergulhar na obscuridade temos um certo número de coisas a dizer um ao outro. Pessoa ergue-se na almofada, bebeu um gole de água e perguntou: que mais fizeste tu? Meu caro, respondeu Álvaro de Campos, vejo com prazer que não me chamas engenheiro nem me tratas com familiaridade. É evidente, respondeu Pessoa, tu entraste na minha vida, substituíste-te a mim, foste tu que fizeste com que a minha relação com Ophélia acabasse. Fi-lo para teu bem, replicou Álvaro de Campos, essa miúda emancipada não convinha a um homem da tua idade, teria sido um casamento falhado. E depois, sabes, todas aquelas cartas de amor que lhe escreveste são ridículas, em suma salvei-te do ridículo, espero que me estejas agradecido. Eu amei-a, murmurou Pessoa. Com um amor ridículo, replicou Álvaro de Campos. Sim, é possível, pode ser que sim, respondeu Pessoa, e tu? Eu?, perguntou Campos. Eu, ora, eu tenho o sentido da ironia, escrevi um soneto que nunca te mostrei, fala de um amor que te vai embaraçar, porque é dedicado a um jovem que amei e que me amou em Inglaterra. Em suma, é depois deste soneto que vai nascer a lenda dos teus amores recalcados, vai fazer a felicidade de certos críticos. Amaste verdadeiramente alguém?, perguntou Pessoa. Amei verdadeiramente alguém, respondeu Campos em voz baixa. Então, absolvo-te, disse Pessoa, absolvo-te julgava que na tua vida só tinhas amado a teoria. Não, disse Campos aproximando-se da cama, também amei a vida, e se as minhas odes futuristas e furibundas foram blague, se nas minhas poesias niilistas destrui tudo, até mesmo eu mesmo, fica a saber que também eu amei na inha vida, com uma dor consciente.
Pessoa levantou a mão e fez um gesto esotérico. Disse: absolvo-te, Álvaro, vai com os deuses eternos, se tiveste amores, se tiveste um só amor, estás absolvido, porque és uma pessoa humana, é a tua humanidade que te absolve.
Posso fumar?, perguntou Campos.
Pessoa fez um gesto afirmativo com a cabeça. Campos tirou do bolso uma cigarreira de prata e pegou num cigarro, enfiou-o numa comprida boquilha de marfim e acendeu-o.
Sabes, Fernando, tenho saudades de quando um poeta decadente, da época em que fiz aquela viagem de paquete nos mares do Oriente, sim, então teria sido capaz de escrever versos à lua, garanto-te, à noite, no convéns, quando havia baile a bordo, a lua era tão teatral, era de tal modo minha. Mas nesse tempo eu era estúpido, fazia ironia com a vida, não sabia aproveitar a vida que me era dada, e foi assim que perdi a oportunidade e a vida me escapou.
E depois?, perguntou Pessoa.
Depois, comecei a querer decifrar a realidade, como se a realidade fosse decifrável, e veio o desencorajamento. E com o desencorajamento, o niilismo. Em seguida, já não acreditei em nada, nem mesmo em mim. E hoje aqui estou à tua cabeceira, como um farrapo inútil, fiz as malas para lado nenhum, e o meu coração é um balde despejado.
Campos dirigiu-se para a mesa de cabeceira e apagou o morrão do cigarro num pratinho de loiça.
Bem, meu caro Fernando, acrescentou, precisava de te dizer tudo isto agora que vamos talvez deixar-nos, tenho de ir, sei que os outros também virão ver-te e já não te resta muito tempo, adeus.
Campos pôs o sobretudo pelos ombros, ajustou o monóculo no olho direito, fez um rápido gesto de despedida com a mão, abriu a porta, deteve-se um instante e repetiu: adeus Fernando. Depois disse: as cartas de amor talvez não sejam todas ridículas. E fechou a porta.
By, António Tabucchi